VIDA DE PASSARINHO


"E se ela soubesse, entenderia que alguns humanos que criam sabiás, furam-lhes os olhos para que a ave, sem saber se é dia ou noite, cante, incessantemente, sem parar..."

Pela primeira vez ela viu uma quantidade de comida muito maior do que de costume. Era uma coisa muito estranhamente oferecida que causava desconfiança. Tinha um brilho, cheiro e beleza realmente chamativos. Se ela não tentasse apanhar essa bela comida, teria que ir muito mais longe. Decidida ela pousou bem perto e foi se aproximando com cautela. Havia uma porta, convidativamente, entreaberta. Ela parou bem à porta, pensou, pensou, pensou. Ao adentrar, assustadoramente, a porta se fechou às suas costas. Ela não se preocupou sequer com a maravilhosa comida que ali estava. Pensava só em conseguir sair dali. Ela se debatia, forçava, mas sem êxito. Já cansada, exausta, viu um ser estranho se aproximar. Ele não tinha penas, era grande, andava de pé e se ela soubesse, o chamaria humano. Esse ser gigante somente com uma das mãos apanhou toda a casa onde ela estava aprisionada. Que desespero! Mais adiante esse gigante se juntou a outro bem parecido, o qual também carregava na mão uma casa contendo um parente dela, o qual, apesar de aprisionado, silvava sem parar. Se ela soubesse, nomearia a casa que lhe continha de alçapão e a que prendia seu parente, chamaria de gaiola. Num breve momento em que os gigantes se afastaram, ela puxou conversa com o parente, mas infelizmente notou que ele não a via. Ela observou, então, que o parente parecia não ter olhos. Perguntou e soube que os globos oculares do parente foram feridos irreversivelmente pelo gigante. E se ela soubesse, entenderia que alguns humanos que criam sabiás, furam-lhes os olhos para que a ave cante incessantemente, sem saber quando é dia ou noite. Nesse momento ela inferiu que aquele também seria seu destino. Estava cabisbaixa, quando o alçapão caiu, a porta se abriu e ela se libertou. Voou o mais rápido que pôde para bem longe. Naquele dia ela ficou com fome. Traumatizada associando o ato de comer com ficar presa. Mas diante da necessidade vital de se alimentar, ela partiu para procurar comida logo que a natureza lhe forçou inexoravelmente.
Ela, de repente, sentiu mudanças em seu próprio corpo e experimentou uma inexplicável necessidade de ter um abrigo. Não sabia como faria, pois era sua primeira vez. Mas seguiu seus instintos, e, aos poucos, construiu seu lar, que se ela soubesse batizaria de ninho. Escolheu um lugar especial, bem protegido, e o caminho era permeado de ofendículos naturais, acúleos e espinhos, para estrategicamente afastar os inimigos. Tempos depois, estando eu seu recanto sagrado, sentiu fortes dores e seu corpo expulsou, pela cloaca, três bolinhas brancas que ela não sabia bem o que eram. Não entendeu bem o que aconteceu, mas, instintivamente, sentia em seu coração que aquelas coisinhas de algum sentido, faziam parte da sua vida, e que, assim, os protegeria para sempre. Ela acolhia calorosamente e as recobria, protegia como podia, principalmente, nos dias frios, mantendo-os sempre aquecidos. As surpresas de sua nova vida estavam somente começando. Em determinado dia, pela manhã, sentiu que aquelas coisinhas brancas estavam se mexendo. Assustada e à distância, ela viu aquelas coisas brancas se quebrando, eclodindo. E de dentro delas saíram três seres idênticos e bem parecidos com ela mesma. Nem mesmo ela saberia explicar o porquê de não precisar de motivos para amar incondicionalmente aqueles três entes.
Todos os dias ela saía para buscar alimentos para os três, os quais, se ela soubesse, chamaria de filhos, filhotes. Nessa busca pelo alimento, ela a cada dia enfrentava novos desafios. Numa vez chovia muito e ela quase não conseguia se deslocar até o lugar onde sempre encontrava alimentos. Numa outra oportunidade, ela se deparou com outros que queriam o mesmo que ela e houve disputa pelos mantimentos, mas ela sabia que seus descendentes dependiam somente dela, e não mediu esforços para entrar em luta pela fonte de sobrevivência, e a conseguiu! Em determinada oportunidade, quando, também, precisou brigar, acabou perdendo a disputa e teve que ir a outro lugar bem mais longe para batalhar pelo alimento dos filhos, sendo que quando chegou ao lar, os pequenos já estavam dormindo, mas acordaram alvoroçados ao sentirem a presença da mãe, e, para o orgulho dela, os filhos não dormiram com fome. Não houve um dia, sequer, diferente dessa rotina. Todos os dias uma nova aventura, uma nova oportunidade de lutar, vencer, orgulhar-se e ser feliz.
Ela lutava muito pela alimentação dos filhos, mas também se preocupava muito quando tinha que sair e deixa-los sozinhos. Apesar de a casa ter sido feita num local protegido, havia uma espécie de seres diferentes, muito poderosos, e temidos por todos os demais mortais. Ela ensinava e doutrinava os filhos segundo os bons costumes e princípios de segurança, principalmente para quando da ausência dela. Ensinava tudo o que podia, mas sabia, no fundo que, para aquela terrível espécie, para os humanos, nada adiantaria. Mas por silogismo ela sabia que dessa tal espécie havia indivíduos antagonicamente diferentes, assim como em todas as espécies, e torcia para que, se seus filhotes fossem descobertos, que o fosse por um dos bons indivíduos. E se ela soubesse, os chamaria humanos.
Havia uma harmonia amorosa entre ela e os filhos. E quando ela chegava às proximidades do lar, os três pequenos já sentiam sua presença, mesmo sem vê-la, e passavam a fazer muito barulho, o que não era aconselhável, por questão de segurança. Porém, ainda assim, nessa gostosa imprudência, era uma festa. Afinal ela sempre chegava trazendo variadas comidas, principalmente, carnes e frutas. Em algumas dessas vezes havia até briga entre os pequenos e, com isso, algum ficava sem comer, pois os mais espertos comiam tudo. Os três pequenos começaram a crescer e necessitar de uma maior quantidade de comida e, com isso, ela passou a ter que ir sempre mais longe para trabalhar e obter os alimentos. Isso tudo era muito cansativo, mas ainda assim ela se sentia muito feliz e motivada. Era como se aquilo desse sentido a sua vida.
Num determinado dia, tomou conhecimento de que uma mãe abandonara dois filhos num lar ali perto, ao alcance de suas vistas. Uma mãe abandonou a família, e os filhos morreram. Isso não lhe fez sentido à época, e agora, com seus filhotes, era uma coisa ainda mais inconcebível. Mas pela experiência que tivera quando fora aprisionada e fugiu, era capaz de concluir que, certamente, aquela mãe fora capturada e por isso não voltou para seus filhotes. Enquanto pensava nisso tudo, do topo da copa da árvore mais alta, observava o ocaso. Andava pensando muito nisso ultimamente.
O arrebol. Era uma linda manhã de um domingo de sol. Tudo parecia perfeito e ela saiu, novamente, para seu trabalho principal, que era o de conseguir alimentação para seus filhos. Assim retirou-se na sua desafiante jornada. Como um prenúncio, ela viu do topo de uma casa na vila, um grupo de rapazes que pareciam estar comemorando alguma coisa. Estavam em círculo e ao centro estavam parentes dela em vários alçapões. Em seguida chegou mais um humano dos pequenos, carregando o que se ela soubesse, chamaria de panela com água quente. Ela jamais imaginaria o grau de crueldade que um humano alcança. Um deles apanhou uma das vítimas e, segurando-a envolta na sua mão, de forma que ficou com a cabeça para fora. Assim o humano golpeou repetidamente uma peça de madeira com a cabeça da vítima, enquanto todos os demais riam. A vítima foi solta inerte ao chão, em seguida colocada dentro da água quente e na sequência foi despenada. Quase que simultaneamente outros humanos pequenos apanharam outros parentes dela, sendo que algumas vítimas foram despenadas vivas, numa sessão inominável de tortura, e depois sarcasticamente soltas ao chão, sem conseguirem alçar voo, era mais motivo da algazarra dos jovens humanos. Ela assistia a tudo sem se dar conta da realidade. Não sentiu fome e chegou a esquecer dos filhotes, tamanha era a sua perplexidade. Não entendia, definitivamente, o porquê. Estava ali ainda atônita, quando algo lhe atingiu a asa e, desequilibrada, caiu ao chão. Logos todos aqueles jovens parabenizavam um outro que se aproximou com uma arma de ar-comprimido, dizendo “ele é bom de tiro”, no que o próprio atirador se lamentava de acertado de raspão. Ela estava com a asa quebrada e logo foi cercada e capturada, mesmo tentando escapar saltando e correndo. Foi colocada dentro de uma gaiola onde estavam outros parentes. Um a um, eram retirados dali e passavam pelos mesmo rituais macabros que ela acabara de assistir de cima do telhado. Em meio aos parentes desesperados que se debatiam, ela ficou parada. pensou nos seus filhotes. Aguardou a sua vez.
No ninho na laranjeira, os três filhotes já estavam quase crescidos e prontos para voar. Mais uma semana e eles sairiam do ninho e começariam ajudar a mãe no divino papel de replantar árvores que muitas vezes são destruídas pelos homens. Estas que promovem a fotossíntese, servem de abrigo e como fonte de alimento para várias espécies, como um ecossistema; que retiram o gás carbônico da atmosfera e o acumulam em forma de madeira, evaporando água, ajudando a equilibrar a temperatura do meio ambiente, para que ele fique ideal para a manutenção da vida de todos os seres vivos. A fome chegou e a mãe não. Mas eles sabiam que ela nunca falhava. Até aquele dia não houve sequer uma vez em que os filhotes se sentiram abandonados. A fome apertava. O crepúsculo chegou e a mãe não. Pela primeira vez eles dormiriam com fome. Amanheceu pela quinta vez. A mãe não chegou. Os filhotes já estavam bem fracos e quase não se mexiam mais. Em suas angústias, se lembravam de quando a mãe chegava com a comida e colocava no bico de cada um dos filhotes, os quais estavam às vezes dormindo, mas eram acordados com o pouso da mãe no galho que sustentava o ninho. O tremor do galho era como um aviso que estava na hora do almoço, do ritual da sobrevivência. Agora, sem comida e já quase desfalecendo, os três, nutridos apenas pela esperança de que uma mãe nunca abandona seus filhos, por um momento juntaram suas últimas forças para se levantarem com os bicos abertos, como sempre faziam à chegada da mãe com a comida. Mas para a última decepção, era um alarme falso. Era o vento que balançava o galho de vez em quando e os fazia lembrar-se da mãe e da algazarra que faziam quando ela chegava. Agora sua lembrança aos poucos se perdeu, assim como as árvores que eles deixaram de plantar e seus ecossistemas. Um aborto coletivo.

LuisBorsan.




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