A FLAUTA

     
     Ela corria com todas as suas forças, pisando, descalça, em pedras, paus, espinhos. Ela não sentia doerem os pés. Não tinha como pensar nisso. Pensava somente em salvar o seu amor. Enquanto corria, ia lembrando de toda a sua bela história de amor. Desde aquele primeiro dia quando ela constatou aquela coisa de "amor à primeira vista", o que só conhecia dos poucos livros a que teve aceso na vida. O rapaz era lindo. Olhou em seus olhos e a cumprimentou respeitosamente: "bom dia, moça...!" Ela, encabulada, nada respondeu, mas o seu coração acelerou-se, sua respiração foi afetada e sua mente deu mil voltas, naquele sentimento que os amantes chamariam de sensação-sem-nome. Naquele lugar de onde ela pensava em sair logo que completasse seus dezoito anos de idade, não havia outras meninas de quinze anos como ela, com quem pudesse compartilhar seus sonhos de adolescente. Além de seu irmão, ela não conhecia nenhum jovem do sexo masculino, dada a grande distância de sua casa para a cidade mais próxima, na região do Baixo Sul da Bahia-BR. A propriedade rural de seu pai localizava-se numa região rural remota, num boqueirão.

    Ela corria, mas, em seu desespero, parecia que não chegaria nunca. A velocidade havia só no seu pensamento, na lembrança de quando naquele primeiro dia, o rapaz chegou estranhamente sozinho à propriedade do pai dela. Era raro alguém aparecer ali, a não ser que tivesse negócios com o pai da menina. O rapaz chegou com somente uma pequena mochila contendo duas mudas de roupa e uma flauta. Conseguiu trabalho no lugar, após dizer que era muito trabalhador, que não tinha para onde ir e que se contentava em ter comida e dormida como pagamento. Sempre sob os olhares atentos dela, o pai definiu que o rapaz trabalharia numa roça nova de mandioca num lugar longínquo, de difícil acesso e que dormiria na barcaça de cacau, até que o rapaz adquirisse a confiança de todos para dormir na casa da família. A mãe dela muito pouco opinava e, inconteste, sempre obedecia ao marido.

     Ela corria e, em sua angústia, lembrava da primeira noite do rapaz ali na fazenda. Ela não conseguiu dormir direito. O rapaz antes de dormir, na barcaça de secar cacau, tocou sua flauta. Era uma melodia extasiante que enebriava os pensamentos dela. Ela nunca havia experimentado aqueles sentimentos. Sua vontade, se pudesse, era ir ao encontro do rapaz, falar de seus sentimentos que tomavam todo o espaço em seu peito, quase a impedir a movimentação dos seus pulmões em seu respirar, visto que de vez em quando tinha que forçar um suspiro profundo para ajustar os espaços para a continuação de seu fôlego. A melodia encantadora da flauta do rapaz percorria uma grande distância, transportada pelo silêncio da madrugada rural e parecia completar, finalmente, a orquestra, antes entediante com somente o chilrear dos grilos e o coachar dos sapos. E sob essa sinfonia, ela engolia a seco e projetava seus sonhos de amor com o rapaz. Casariam-se numa igreja, com ela usando véu e grinalda, ao som da marcha nupcial que ouvira no rádio (de Mendelssohn - da peça de Shakespeare - Sonhos de Uma Noite de Verão), teriam um casal de filhos, morariam numa casinha branca com varanda, com quintal e uma janela virada para o nascente.

     Ela corria e não alcançava a exaustão, assim como o destino final parecia cada vez mais distante. Em seus pensamentos lembrou-se de quando travou o primeiro diálogo com o rapaz, longe dos olhos do pai, é claro. Trocaram elogios. Ela disse que gostava de ouvir a flauta. Ele disse que a achava muito bonita e que estava reunindo coragem para, um dia, pedir sua mão em namoro ao pai. Ela nada conseguiu responder e aguardou o segundo encontro, semanas depois, para que conseguisse dizer que aceitaria a proposta de pedido de namoro. e mesmo tendo ensaiado muito, o fez cabisbaixa, alternando olhares para o rapaz e para o chão. O tempo de espera angustiava o coração dela que durante o dia antegozava os momentos noturnos, quando flutuaria para o além, navegando nas melodias da flauta do seu príncipe encantado. E agora que se sabia do mútuo querer, o amor parecia se processar por telepatia, não transmitido pela mente que detém a razão, e sim entre os corações, verdadeiras fontes de emoção e moradas do cego-amor.

     Ela corria e rompia matagais que, abrasivamente, lhe feriam braços e pernas com seus vegetais diversos, testemunhas oculares de sua agonia. Lembrou-se de quando tentou comentar com sua mãe sobre seus sentimentos, mas foi reprimida pela genitora: "Deixe de besteira, senão vou dizer ao seu pai!". E como uma autodefesa do coração, buscando algum sossego para a alma, lembrou-se dos momentos prazerosos passados com o amado na barcaça. Ela não suportou mais os turbilhões de sentimentos triturando o interior de seu peito, tomou coragem que não sabia ter, enfrentou todos os medos imagináveis, esperou seus pais dormirem, caminhou de passo-leve, abriu a porta sorrateiramente, caminhou pelo escuro sem lembrar das assombrações que lhe traumatizaram a infância, chegou ao paraíso. A barcaça tinha um cheiro forte de amêndoas fermentadas de cacau, mas suas narinas anestesiadas estavam pelo insensato amor dos amadores. Ela ouviu a melodia da flauta que lhe encantava a distância, e o feitiço potencializado pela proximidade fez com que ela se entregasse totalmente, em todos os sentidos, nos braços do rapaz. E, sem darem ouvidos à razão, antecipadamente, deitaram-se no improvisado leito de amor. Sabia-se nesse momento sublime que não haveria arrependimentos. E combinaram que o rapaz iria pedir permissão aos futuros sogros para oficializar o namoro.

     Ela corria e, agora, gritava para suportar todas as espécies de dor que sentia. E a lembrança que agora povoava sua mente, por um momento, culpava a genitora por toda a desgraça em andamento. Ela estava no quarto com a mãe e ao trocar de roupa, sua mãe lhe questionou exclamada: "Que barriga é essa menina?!" Ela tentou murchar o abdome para disfarçar, mas a mãe havia percebido tudo. E nesse susto que tanto mata quanto engorda, o falar alto da mãe despertou a curiosidade do pai. Ele parou à porta do quarto, afastou com uma das mãos a cortina de chita de estampa florida e bastou um olhar nos olhos da filha para reconhecer seu olhar de confissão. O pai colocou a outra mão no facão que trazia na cintura e, com voz grave de raiva e os dentes travados resmungou lentamente: "deflorada". Gritou pelo filho e ambos saíram apressados pela estrada, na direção de onde estava o rapaz. Não precisaram de muitas palavras para que todos entendessem o que estava para acontecer. O pai lavaria a honra de sua filha com o sangue do rapaz. Mas ela tinha uma chance. Sabia onde o rapaz estava trabalhando e poderia tomar um atalho pelo matagal e assim chegaria antes de seu pai e seu irmão. Fugiria com seu amado e colocaria em prática todos os sonhos planejados naquelas noites em claro ao som mágico da flauta. Casariam-se mesmo sem as bênçãos dos pais. Pediriam perdão a Deus e seriam felizes para sempre.

     Então por isso ela corria insanamente. Pés ensanguentados, pele marcada inclusive por hematomas dos choques com arbustos, os cabelos esvoaçantes sem as mechas que ficaram para trás presas em galhos, lágrimas arrancadas do seu rosto pelo vento insensível. Em determinado momento ela sentiu uma forte dor na barriga. Dividiu sua preocupação com o filho que esperava, fruto do seu amor com o rapaz. Diminuiu a velocidade da corrida, mas manteve-se em marcha à frente. De repente venceu todo o matagal e acessou uma clareira. Viu o local onde o rapaz trabalhava na plantação de mandioca. Alegrou-se por não ter visto seu pai e seu irmão e concluiu que havia chegado a tempo e seu esforço sobre-humano por dentro do mato valera a pena. Ficou parada recuperando o fôlego e apurando as vistas em busca do seu amor, quando uma cena feriu mortalmente o seu coração. Ela viu no terreno plano um pequeno relevo com terra fofa, e sua intuição impôs-lhe a conclusão fatídica de que seu amor ali estaria enterrado. Ela correu até o local, viu algumas marcas de sangue e teve a confirmação de que seu pai e irmão haviam chegado antes. Sentiu-se culpada. Não deveria ter diminuído a velocidade de sua corrida. Ela agachou-se sobre a cova-rasa e, com as próprias mãos escavou a terra, sem se importar com o quebrar sequencial de suas unhas. Ela ainda nutria fios de esperança, mas não demorou a desvendar a barba do rapaz, terrivelmente suja de sangue e terra, além, agora, das lágrimas da amada. Ela deitou-se, de forma comovente, sobre o corpo inerte do amado, o pai do filho que ela trazia no ventre, aquele que a levaria num cavalo alado para a felicidade. Com expressão de profundo lamento, passou a beijá-lo enquanto fazia promessas de amor eterno. Ela não voltou para casa.

LuisBorsan

0 comentários

Postar um comentário