A VIDA É UMA CACHAÇA

"Porque no fundo eu sei que a realidade que eu sonhava afundou num copo de cachaça e virou utopia". (Caio F. Abreu)


     Aos 10 anos de idade Pingo já tomava uns goles de cachaça com o pai, após o trabalho duro na roça. Ao final da tarde, muitos dos trabalhadores rurais se reuniam na venda da roça para uma espécie de "happy hour" rural. Não havia sequer geladeira na localidade e, logicamente, o uso de cerveja era inviável. Além do que a cultura local fazia crer que a bebida de macho era a cachaça. E havia muitas especialidades dessa bebida, inclusive aquela que era considerada a mais especial. A que tinha uma cobra dentro da garrafa. E essa era para os mais machos ainda. Esse encontro diário na venda era como um ritual que salvava as almas dos pobres desvalidos que se embrenhavam na mata, destemidos, em busca do pão-de-cada-dia, visto que essa era a única forma de sobrevivência que conheciam. O álcool os fazia esquecer momentaneamente a realidade cruel que lhes roubava mais aceleradamente a energia vital. ainda que fosse, na verdade, um potencializador dessa aceleração.

     Uma vez a cada dois meses o pai de Pingo ia à cidade, e, na volta, além dos mantimentos familiares da cozinha e das muitas garrafas de cachaça, trazia as narrativas do que via naquele outro mundo desconhecido, de que Pingo só conhecia de ouvir falar. Pingo, ansioso, logo puxava do pai que lhe contasse as novidades. O pai de Pingo quando voltava da feira, ganhava um semblante mais alegre, divertido, falante, atencioso, cantor, o que fazia com que Pingo amasse mais ainda a cidade. porém, às vezes o pai de Pingo chegava tão embriagado que não conseguia contar a nova história periódica. Isso causava uma grande angústia em Pingo, que se maldizia da sorte, pensava consigo que quando tivesse um filho lhe daria melhor atenção, pois saberia o que um filho espera de um pai. Após se recuperar da ressaca, o pai de Pingo, já sóbrio, não tinha disposição nem desenvoltura para narrar as aventuras da cidade, da feira. 

Assim Pingo seguia vivendo dos últimos contos, como o caso de um gato que mordia a todos na feira se não lhe dessem cachaça, e que os cachaceiros da área lhe davam bebidas alcoólicas numa tampinha de cerveja e isso, também, lhe causava um comportamento agressivo; e o caso do doido que se mordia, caso não atendessem seu pedido de esmola de uma dose de cachaça.


     Pingo insistia há muito tempo para que o pai levasse-o consigo para conhecer a cidade. Queria comparar com o que havia em sua imaginação. Pingo ouvia falar que na cidade tinha um lugar chamado de banco, onde as pessoas guardavam dinheiro. No seu entendimento, era um lugar como uma rua, sem pavimentação, havia um banco (de praça), alguns homens ali sentados a conversar, igual como os da venda onde tomavam cachaça, haveria uma casa com uma janela, por onde os homens guardariam seu dinheiro. O pai, contudo, explicava que Pingo ainda era muito pequeno para enfrentar as dificuldades da difícil estrada até a cidade, que era percorrida a pé, por cerca de duas horas; que algumas pessoas já haviam morrido nesse caminho, inclusive, atacados por animais. Dizia ainda a Pingo, que só tomando umas cachaças tinha-se coragem para essa aventura.


     Em épocas chuvosas as viagens à cidade ficavam mais raras, e chegava a faltar até a cachaça na venda. Isso era demasiado triste. Os homens voltavam da roça enlameados, tristes, cabisbaixos e nem conversavam, tampouco paravam na venda. Pingo, por tabela, era acometido de uma tristeza sem fim. Não tinha nem as histórias da feira narradas pelo seu pai, e se sentia ainda mais distante do sonho de conhecer a cidade. O Pai de Pingo, numa introspecção contagiante, quase não falava com o filho. Pingo, de certo modo, não entendia direito por que os homens tinham medo da chuva, se em outros momentos comemoravam quando chovia na plantação, por que desistiam de ir à cidade, já que lá tudo era tão bom?!


     Aos doze anos, Pingo conquistou o direito de ir à cidade com o pai, apesar dos protestos da família, que recapitulava que, até então, ninguém havia ido à cidade com tão pouca idade. O pai lembrou que fez essa primeira viagem aos 16 anos, o avô aos 18, a mãe aos 20. O cansaço da estrada fez Pingo finalmente entender todas as dificuldades contadas pelos transeuntes costumeiros desse caminho. Chegou a parar várias vezes para descansar, sob as reclamações do pai, na base do "eu te disse". A conclusão da viagem ficou mesmo comprometida quando começou a chover torrencialmente, e não havia um abrigo sequer. Pararam sob uma grande árvore, mas logo desistiram de ficar ali, quando viram outra árvore ser atingida por um raio e ser assustadoramente dividida em duas bandas. Encontraram uma pequena gruta e ali se abrigaram até a noite. O frio os castigava e a única contrapartida era a última garrafa de cachaça que o Pai de Pingo tinha. A bebida que já era usada como uma espécie de combustível para se ter coragem de enfrentar a temida vereda, tinha agora seu objetivo e conteúdo divididos. Dormiram bem juntinhos compartilhando o calor corporal característico dos mamíferos que são animais de sangue quente e conseguem manter a temperatura do corpo independente do clima ambiental.


     A cobra pertence à classe dos répteis e são animais ectotérmicos, ou seja, de sangue frio. Sua temperatura corporal depende diretamente do ambiente, e as baixas temperaturas diminuem drasticamente seu metabolismo, podendo causar a morte. Uma serpente que havia tido uma sorte melhor do que aquela colocada na garrafa de cachaça da venda, encontrou na gruta uma proteção da chuva fria. Esse encontro não seria tão agradável quanto o "happy hour" no barzinho da roça, onde bebiam cachaça-de-cobra... E quem dera que a cobra não tivesse evoluído biologicamente do seu ancestral que vivia no mar, o nosassauro.


     O pai de Pingo foi acordado pelos gritos do filho dizendo que havia sido picado por uma cobra. O pai de Pingo demorou para discernir que não era um pesadelo, tamanha era sua embriaguez e abatimento sonífero. Enquanto carregava o filho nos braços, o pai de Pingo tinha esperança no mito de que a chuva fria curaria sua embriaguez. Precisava estar bem para conseguir levar a criança até o posto médico da cidade, pois lá havia soro antiofídico. A feira poderia esperar, mas a vida do seu filho, não. Estavam na metade do caminho. Normalmente, faltaria uma hora de caminhada. Em meio às quedas sofridas, mais pela cachaça do que pela irregularidade do terreno, o pai de Pingo seguia... Mesmo com sua mente conturbada por vários fatores alucinógenos e desnorteadores, chorou ao concluir que não conseguiria chegar a tempo de salvar seu filho. Já havia caminhado por seis horas e a cidade não chegava! Ao chegar na mesma gruta onde dormiram, passou a conversar com Pingo sobre as coisas que o menino encontraria e conheceria na cidade, como sempre quis. Pingo não interagia mais. O pai passou a maldizer a cobra e a fazer questionamentos emocionados a ela sobre o incidente. A cobra nada respondeu, morta que estava na mochila às costas do pai de Pingo, à espera de virar ingrediente da melhor cachaça. O homem antegozou o momento da degustação, com o pensamento de que teria que ser uma cachaça das boas, daquelas feitas sob encomenda! A chuva cessou.
     
     

3 comentários

  1. Brilhante texto, meu contador de "causos".

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  2. Moral da história. Tudo culpa da cachaça. Parabéns!!! Texto brilhante.

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  3. Gostaria de ler uma história sua todos os dias! Fica a dica rsrsrs. Parabéns meu amigo.

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