QUE SE AMAVAM COM MANTEIGA

Atenção! A manteiga aqui citada não é a mesma de "O ùltimo Tango em Paris".


NA SUA CASA TEM MANTEIGA?

A partir de uma brincadeira dos respectivos pais, ele e ela, ainda crianças, se sentiam enamorados. Isso, a partir do fato de que ela não gostava de pão sem manteiga, e ia sempre à casa dele, que lhe dava uma pequena porção. Imitando as novelas e filmes românticos, passaram a comutar juras de eterno amor. Eles cresciam apaixonados, um pelo outro, e os momentos em que passavam separados lhes causavam, mutuamente, uma sensação angustiante que lhes parecia dor de estômago. Mas o destino lhes pregou uma peça cruel, quando os pais dela tiveram que se mudar para a capital. Na comovente cena de despedida, entregues num abraço que sufocava o próprio amor, eles prometeram, um ao outro, que um dia recomeçariam a bela história de amor, o que aconteceu 15 anos depois.

“Reencontro com a namoradinha de infância: sonhos da beira do mar.”

Ele olhou para os lados antes de entrar. Queria se certificar de que não estaria sendo visto. Morreria de vergonha se algum amigo o visse entrar ali. Aquele lugar sugeria a confissão de uma incapacidade de conquistar alguém por seus próprios dotes de qualidade. À medida que ele adentrava no recinto, ia sendo seguido por olhares que ele não conseguiria distinguir. Chegou a pensar como seria bom se pudesse ler os pensamentos daquelas pessoas, principalmente das mulheres. Dessa forma, saberia como se comportar, sem se sentir constrangido. Ele apurou as vistas e se dirigiu a um balcão. Caminhou passos indecisos, seguido por luzes coloridas que, com propositada fraqueza, desnudava a escuridão somente o necessário, para que naquela noite “todos os gatos parecessem pardos”. Um garçom bem vestido e, estrategicamente, atencioso lhe ofereceu uma bebida desconhecida, argumentando que se tratava de um vinho importado do Rio Grande do Sul-BR, feito de maneira artesanal, cujas uvas selecionadas eram pisoteadas por belas camponesas de descendência italiana. Ele não reunia condições psicológicas suficientes para discordar e rejeitar o produto, agora, com tanto valor agregado. Ele bebeu sozinho, como sempre fazia quase tudo. E talvez por isso estivesse ali, apesar de todo constrangimento. Ele nunca teve muita habilidade para fazer amizades, justamente porque achava que ninguém o entendia. E com as mulheres não era diferente. As poucas com quem se envolveu eram fúteis e superficiais, não sendo capazes, sequer, de serem ouvintes. O garçom perguntou se ele não iria escolher uma daquelas lindas mulheres de aluguel, e explicou que bastaria acenar com a mão, que qualquer uma delas viria até ele. Com essa audição, ele foi tomado por uma sensação sem nome, mas que se insinuava, claro, em sua mente, que os homens vivem a vida real objetivando chegar a esse patamar de poder social, financeiro, a ponto de se deleitar nessa força pela qual o homem se destina pretensiosamente a ser maior que Deus, por ser filho de Adão. E dessa forma, concluiu que era para isso que aquele tipo de ambiente existia. Para, justamente, fazer com que os homens se sentissem como se já tivessem alcançado o convencional objetivo sociocultural. Ali, mesmo que fosse por alguns momentos, um homem se sentiria mandatário, rei, e teria a mulher que quisesse, pagando uma quantia bem menor, visto que na vida real teria que assumir um compromisso que lhe custaria, muitas vezes, a própria vida, ainda que sob o caráter filosófico. Além disso, todo homem precisa ter um hobby, ainda que um vício, mas que o estimule periodicamente, que lhe instigue, que lhe faça sentir-se vivo, sob o senso de que todo sacrifício e toda luta valem a pena.
Em seu acento giratório, após algumas doses daquele surpreendente vinho que lhe expôs a verdadeira verdade, ele já estava mais à vontade para uma inspeção ocular panorâmica. E em determinado momento apurou bem as vistas e viu uma bela mulher, sentada numa mesa de canto, na penumbra da penumbra, abaixo de uma lâmpada colorida e queimada, o que lhe projetava uma sombra ao rosto. Seus olhos grandes explicitavam uma candura angelical, como se ela estivessem fitando o infinito, totalmente envolta em mistérios. Ele apurou ainda mais a visão naquele diabólico crepúsculo, até perceber que ela o observava. Por um momento ficou encabulado e desviou o olhar, mas num estalo, sua memória lhe pregou um grande susto. Parecia aquela menina com quem ele sonhava em sua infância. Com quem trocava juras de amor eterno. Diziam um ao outro que iriam se casar e que teriam muitos filhos, chegando, inclusive, a escolher os nomes dos rebentos, em meio a discussões que se consensuavam quando o nome sugerido era nome de santo. Agora, encorajado não só pelo poder do vinho, mas principalmente pelas lembranças perturbadoras e inquietantes, ele caminhou em direção a ela. Sua perplexidade aumentava à medida que se aproximava e confirmava suas lembranças. Reviveu em sua memória os sábados quando saíam para fazer lanche numa padaria e, com seu raro dinheiro, comprava pão e refrigerante, sendo que ela tomava somente a bebida, porque não gostava de pão sem manteiga... Lembrou-se ainda do momento no qual, para atravessarem uma rua, correndo, ele pegou em sua mão pela primeira vez, no caminho da escola, que sempre faziam juntos, e de mãos dadas se mantiveram, sem qualquer medo da vida. A doçura memorial foi interrompida bruscamente pelo choque de realidade, quando ele recobrou os sentidos na consciência sobre o local onde agora estavam. Aquela longa caminhada, do balcão do bar até a mesa, havia chegado ao fim e eles estavam ali, frente a frente. O silêncio que se abrigou não impediu que dissessem tudo um ao outro. Os olhares cruzados, em tamanha profundidade, num entendimento concedido, pelos anjos, somente aos amantes, promovia um luxo radioso de sensações. Aquela eternidade de momento foi interrompida pela voz dela, que, num grande esforço, conseguiu pronunciar um tímido e monossilábico “oi”, respondido por ele, no mesmo tom e com compreensível atraso. Sem muitas palavras, seguiram para um dos estrategicamente temáticos quartos, onde completariam a bela história de amor, projetada  desde a meninice. Eles se entregaram a um êxtase que sufocava o próprio amor. E de uma forma que provava que se poderia viver a felicidade de uma vida toda em poucos minutos. Confirmando de vez a noção pela qual se crê que a gente agrada a Deus fazendo o que o diabo gosta. Em mais um choque de realidade, o tempo comercial acabou e ele teve que ir embora, enquanto ela, mesmo fragilizada pela divindade daquele momento, teve que atender ao próximo cliente.

“Eu vou tirar você desse lugar. Eu vou levar você pra ficar comigo. E não interessa o que os outros vão pensar.”

No dia seguinte ele voltou. Procurou-a e não a encontrou. Mas logo soube que teria de esperar a sua vez na fila de clientes. Diante dela, não teve dúvidas. Declarou-se. Disse com a voz embargada: “Olha, eu não vim aqui para me distrair. Eu senti saudades de você. Eu precisei do seu carinho. Eu me sinto tão só. E já não posso mais lhe esquecer. Eu vou tirar você desse lugar. Eu vou levar você para ficar comigo. E não me interessa o que os outros vão pensar. Não me diga que você tem medo de não dar certo, que o passado vai estar sempre perto, e que um dia eu posso me arrepender!” Ela demonstrou resistência e questionou onde e de que iriam viver. Mas ele, com suas belas palavras sonhadoras, ele a convenceu, argumentando que iriam morar numa palhoça no canto da serra, onde acordariam ao som de uma orquestra de passarinhos, e que lhe prometia uma riqueza que quase ninguém consegue perceber. Explicou que era uma casa pequena, mas que dava bem para os dois e que se fosse preciso, aumentariam depois. Persuadiu-a, mais ainda, quando disse que tinha um violão e que cantaria para ela, em sua varanda, nas noites de lua. Ela, atônita e pensativa, pediu um dia para refletir. Ele disse, então, que não voltaria mais ali. Que a esperaria em casa, caso a resposta fosse afirmativa. Naquela noite ele não dormiu, passou o tempo na varanda, com seu violão cantando à lua, antegozando a manhã que, na sua angústia, não se avizinhava. Poucos instantes após o sol lhe saudar com um poético bom dia, ela chegou. Assustou-se com a pobreza, mas nada disse. Viveram um “felizes para sempre...” passeavam juntos nos campos, deitavam na relva, escutando os cantos dos pássaros, tomavam banho de cachoeira, faziam de todas as noites a noite mais linda do mundo.

“...E, depois de um longo tempo de enganos, tudo deu em nada...”

O clima romântico só esfriava de manhã, inclusive, quando ela reclamava pela falta da manteiga para o café da manhã. E numa dessas manhãs, desfazendo a tese do “amor que fica”, e corroborando a que diz que “o fracasso provoca o desamor”, ela passou a questioná-lo sobre quando iria arrumar um trabalho melhor para progredir na vida. E ele, em mais um dos infinitos devaneios, poeticamente, lhe dizia: “dias melhores virão!” Mas aquelas abstrações já não acalmavam o coração de uma mulher jovem, bonita, cheia de pretendentes dispostos a pagarem muito pela sua companhia e seus sortilégios. Aqueles sonhos já não a tranquilizavam. E como um cristal bonito que se quebra quando cai, todos os sonhos estavam agora refletidos somente em seus enganos. Ela voltou para o bordel. Lá se sentia importante e valorizada financeiramente, ao menos. Além disso, sempre tinha manteiga. Enquanto ele, eterno bom vivant, sentia a falta dela em seu próprio corpo. Se era dia, vivia ao sol, entoava sua saudade e sua tristeza num alegre cantar. Se era noite, rendia-se às estrelas, e, no escuro, sob a luz do seu cigarro, já na cama, projetava novos sonhos e desejos tão efêmeros, que se desfaziam na realidade da fumaça. E quando, em sua cabeça, ela era atormentadora, era o único pensamento, ele se sentia remoído pela saudade envolvente, então se possuía, e era na sua intenção, relembrando todos os momentos quentes, que era quando mais se acelerava, em todos os sentidos, o seu coração. Passada a prazerosa autopossessão, era triturado pelo arrastar do tempo que atritava abrasivamente a sua alma. Seus olhos fitavam sempre o vazio. Seu andar não tinha norte nem destino e ele não sabia mais o que era verdade nem mentira. A cada fechar de olhos, ele a via em seu sorriso inesquecível. Em sua alucinação, ele a imitava em seus gestos e gostos, tentando não esquecê-la, enquanto fugia de si mesmo e não mais se encontrava em sua própria vida.
            Ela, que apesar de tudo, não era de ferro, o visitou. Confessou que estava sofrendo. Disse que muitas vezes pensou em voltar e dizer que o seu amor em nada mudou, mas que seu orgulho foi maior, que sem ele morria, todo dia, sem ninguém saber. Conversaram na tentativa de encontrar uma solução para não traírem a si mesmos, nas promessas mútuas de amor eterno, desde a infância. Chegaram à conclusão que ela continuaria a trabalhar no bordel, e ele permaneceria em sua característica de bom vivant, poetizando a vida em suas cantorias ao sol e às estrelas. Ela os cuidaria de ser, enquanto ele os cuidaria das coisas do jardim. Ele pediu que ela pensasse nele quando estivesse "executando seu trabalho". E ela, amorosamente, lhe prometeu: "cada beijo, vendido, que eu der, há de ser em homenagem a ti!"
            Agora, ele ficava em casa. No fundo, sentia-se ferido pela flecha preta do ciúme, imaginando quantos homens ela estaria fazendo felizes, sendo mulher. E essa sensação dilacerante se agravava quando ela chegava em casa, à noite, com a bolsa cheia de dinheiro. Ele pensava em lhe pedir para largar o emprego, mas, ao mesmo tempo, seu sofrimento desaparecia quando o dinheiro trazido servia, inclusive, para comprar manteiga. Isso a mantinha em casa. E sua presença o salvava, de todas as formas.
            E viveram felizes para sempre...

LuisBorsan.

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