O Silêncio dos Inocentes


É Pena eu não ser surdo, eu não sofria tanto...


A comunidade fez uma campanha e, com a quantia arrecadada, comprou-lhe um aparelho auditivo que acabaria com a sua surdez. Deus havia, finalmente, com muito atraso, ouvido suas preces. Ele quase não tinha mais esperança. Todas as suas expectativas foram morrendo pelo caminho, ao longo de sua vida. Mas agora, como numa grande surpresa, um grande presente de natal, sua vida iria mudar. Iria ser uma pessoa igual às outras. Sua felicidade estava garantida. Sua vida estava salva e, agora, passaria a fazer sentido. Que coisa boa! Ele podia ouvir o canto dos pássaros, o algazarra das gotas d’água da chuva, o barulho da alegria das crianças correndo e gritando. Ele jamais imaginou que o vento às vezes ecoava. Os carros, as motos, as buzinas, as fábricas, as festas. Isso! Tudo era uma festa a cada descoberta de um novo som. E a música foi descrita por ele como um sonho auditivo. Era um êxtase total e perene. Tanto que estava constantemente inquieto, voltava-se todo momento para os lados, para reconhecer a origem de som, sempre, surpreendente. Mas, em determinado momento, ele se questionou se seria possível, algum dia, enjoar de toda essa grandeza. E sua mente logo se recusou a continuar a pensar nisso. Como ousaria?!


Ele nasceu surdo. E desde a mais tenra idade sofria com essa deficiência. Algumas crianças recusavam-se a brincar com ele, porque, segundo elas, a brincadeira ficava comprometida, vez que ele não interagia como os outros menores. À medida que ia crescendo e ia entendendo as discriminações que sofria, aumentava sua angústia. Ele se questionava por que não poderia ser igual às outras crianças, por que teria sido escolhido para carregar aquela deficiência, aquele castigo, o que teria feito de errado para merecer tamanho sofrimento. Quando frequentava a igreja com sua família aos domingos, ele aproveitava para questionar a Deus, por que havia sido tão mau com ele, por que tamanha crueldade. Na fase da adolescência, sofreu ainda mais, inclusive, porque quando nutria algum sentimento afetivo por alguma menina, experimentava uma implosão dentro do seu peito, no seu coração, ao saber que a pretendida deixava claro que não o namoraria por causa da surdez. E suas dores só se amenizavam com o cultivo de uma esperança que ele trazia na alma, de que algum dia ele iria ser curado daquela trágica mácula existencial.



Certo dia, folheando uma revista estrangeira, ele tomou conhecimento da existência de um aparelho que, colocado no ouvido, poderia lhe dar a sonhada audição que o faria igual aos outros, que lhe poderia retirar o pesado castigo divino ao qual havia sido condenado desde o nascimento, de forma atroz e injusta. Era a salvação da lavoura. Mas ao saber do preço do revolucionário aparelho, tudo desmoronou novamente, como um belo e ilusório castelo de areia. Seria impossível a aquisição, visto que sua família não reunia condições financeiras para tanto. O valor correspondia a um ano de trabalho de toda a sua família. Seus males haviam crescido com a sua idade e sua tristeza era tão exata! Até que ele não suportou mais e pensou em suicídio. Mas, felizmente, alguém tomou conhecimento e divulgou o fato do intento criminoso contra a sua própria vida, sendo que foi iniciada uma campanha que culminou na inimaginável compra do tal aparelho de surdez. Foi feita uma cerimônia solene na comunidade onde ele morava, com a presença do prefeito e outras nobres personalidades sociais. Foi bonito de se ver! O momento em que o aparelho foi ligado pela primeira vez e ele pôde ouvir o som da vida, pela primeira vez. Ele gritava de alegria, mas intercalava essa manifestação incontida de alegria, com alguns momentos de silêncio, para se deleitar universalmente com a grande orquestra do mundo. Foi tanta emoção que ele chorou e foi seguido nesse sentimento por quase todos...


Os dias que se sucederam foram tomados pelos seus projetos da nova vida. Pensava em ser cantor, em ser fonoaudiólogo, em ser médico, em ser construtor dos tais aparelhos para surdos. Sua alegria e força de viver, agora, eram contagiantes. Mas, algum tempo depois, ele passou a sentir algumas mazelas até então desconhecidas, como: estresse; insônia; irritabilidade; ansiedade; e distúrbios endocrinológicos, como obesidade, crescimento demasiado de pelos e cansaço. Não havia espaço para coincidências, tudo fazia crer que as doenças surgiram após ele ter adquirido a audição. A exposição a buzinas de carros, freadas de ônibus ou sirenes de ambulância, agora, estavam lhe causando grandes sustos. Seu cérebro parecia estar em alerta perene, com sintomas condizentes ao que apregoa a Organização Mundial da Saúde (OMS), que aconselha que não se deve estar exposto a ruídos que ultrapassem 50 dB (decibéis), sendo que os ruídos comuns de uma cidade podem chegar aos 80 dB. Ele já estava tendo problemas para dormir, e às vezes se valia de remédios para aderir ao sono. Em uma consulta psicológica, ele soube que as pessoas, em geral, vinham sofrendo desses mesmos males, mas que estariam acedendo a técnicas científicas que garantiam eficácia. Uma médica lhe disse que as pessoas vinham buscando alternativas, mas acabavam descobrindo que não tinham escolhas, visto que era quase impossível livrar-se dos males provocados pelos ruídos do mundo. Mas que nessa busca, a nova tendência estava sendo as técnicas de concentração e meditação. E mais médicos lhe diziam que os barulhos constantes promovem contínuo esgotamento emocional, o que afeta a qualidade de vida.



Dessa forma, ele passou a se questionar se o mal, de que se maldizia desde a infância, era realmente um castigo ou uma dádiva de Deus... “É pena eu não ser surdo, eu não sofria tanto”! Essa filosofia retumbava em sua mente. Ele foi acometido por um forte sentimento de arrependimento, e, em pouco tempo ele, simplesmente, parou de usar o aparelho auditivo. Descobriu que aquele objeto lhe fazia infeliz. Quis, então, voltar a sua situação anterior, de surdo. Concluiu que o mundo é demais barulhento. Era um grande desgosto ter que ouvir incondicionalmente os barulhos de que não gostava. No auge do seu desespero, em alguns momentos, pensava estar ouvindo vozes do além, pois não conseguia identificar de onde vinham, e ficava com medo. Queria, agora, voltar a ser surdo. Entendeu que precisava retomar a impagável paz que perdera. Percebeu que só o sossego e a serenidade de uma surdez seriam capazes de proporcionar "o silêncio dos inocentes".

LuisBorsan
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