MURALHAS DA SOLIDÃO


A única precaução contra os remorsos da morte é a inocência da vida. (Jacques Bossuet)

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Ele acordou mais cedo do que o normal, pois era domingo, era dia de visita. Finalmente ele iria rever sua mulher e sua filha após um mês. Ele quase não conseguiu dormir direito, tamanha era sua ansiedade para rever sua família, que era a razão do seu viver, era o que lhe dava sustentação para suportar tudo o que lhe estava acontecendo. Então, após acordar, por volta das 05 horas, logo tomou banho, escovou os dentes por duas vezes, planejando dar muitos beijos na sua visitante, fez todos os asseios matinais, escolheu e vestiu a melhor roupa que tinha, e ficou prostrado junto à grade, desde às 06 horas, à espera do horário da visita, mesmo sabendo que esse evento só se iniciaria às 10. Sua inquietude o fazia andar de um lado para o outro, causando incômodo aos seus companheiros de cela, os quais reclamaram repetidas vezes, dizendo que queria dormir.

Enquanto esperava, ele relembrava todos os motivos que o levaram àquele lugar. Ele era caminhoneiro, tinha um velho caminhão, há pouco tempo e ainda não tinha uma clientela grande. Assim, seus serviços eram contratados com raridade. Num dia ocioso, estava em casa com sua companheira e com sua única filha, de seis anos de idade. Estava preocupado com a escassez de serviço. Sua mulher, muito religiosa, rezava pedindo aos céus, que seu marido arrumasse um trabalho. À tarde desse mesmo dia, ele recebeu a visita de um senhor que ele havia conhecido num posto de parada de caminhoneiros, quando conversaram muito, trocaram números de telefone e se tornaram amigos. Esse homem vinha trazer a proposta de trabalho, tão esperada. Deus havia ouvido as preces. O tal senhor disse que havia recebido uma solicitação de frete em seu caminhão, mas devido ao seu estado de saúde debilitado, estava momentaneamente impedido de dirigir, estava com duas hérnias de disco na coluna vertebral. Então o homem disse que queria que ele fosse até a cidade dos habitantes de ilha, para, ali, apanhar o caminhão do referido homem, para promover o serviço solicitado. Seriam, assim sócios, nesse serviço, no qual um entraria com o veículo e o outro cederia sua mão de obra, como motorista. Sem pensar muito, ele logo aceitou a proposta e, no dia seguinte, partiu para supracitada cidade, já na madrugada do dia seguinte.

Agora ele estava ali à espera de sua mulher, morrendo de saudade e de ansiedade, para lhe explicar que era inocente, e que estava sendo vítima de uma grande injustiça. Ele tinha certeza de que sua companheira fiel acreditaria nele, visto que convivam há muitos anos, num clima de harmonia e confiança. Ele havia ensaiado tudo que diria a sua amada esposa. Proferiria palavras românticas e juras de eterno amor. Diria o quanto a ama e que faria de tudo para provar sua inocência, para logo voltarem a viver juntos e criar sua pequena e única filha. Ele havia voltado a ler a bíblia e estava igualmente ansioso para dizer isso a sua mulher, que nunca deixou de ler e o fazia sempre em voz alta para suprir a falta de leitura por parte do marido, apesar de ele nem sempre prestar atenção na leitura da companheira, visto que direcionava sua aplicação auditiva mais para a televisão.

De volta a suas lembranças, ele lamentava não ter tido astúcia suficiente para desconfiar de que, com aquele trabalho oferecido, estaria caindo numa cilada. Ele não conhecia aquele homem suficientemente para dispensar-lhe confiança às cegas. Mas ao mesmo tempo ele tentava convencer-se de que estava tão necessitado do trabalho, inclusive, para poder pagar as prestações do financiamento do seu caminhão, que desprezou as más possibilidades. Ele se lembrou de que quando chegou ao local indicado pelo tal homem, esse não estava presente. Estavam apenas alguns rapazes, e, inclusive, tinha uns mal-encarados que não lhe olhavam nos olhos. Logo um desses tais se aproximou dele, entregou-lhe a chave do caminhão do homem, apresentou os tais rapazes, mas de forma coletiva e lhe disse que os mesmos seriam os ajudantes que carregariam o caminhão. Saíram todos no veículo de carga e seguiram por uma estrada vicinal, até chegarem a uma porteira de uma propriedade rural, sendo que um dos rapazes, o que parecia ser o líder, disse-lhe que o caminhão era muito grande e que não passaria pela mencionada porteira. Disse, então, que ele deveria esperar ali no caminhão, enquanto todos os outros seguiriam a pé, para apanharem a carga. Ali no caminhão, ele passou a achar estranha aquela situação, mas logo atribuiu sua desconfiança ao fato de desconhecer aquelas pessoas. O próprio dono do caminhão, ele conhecia apenas por um apelido. Não sabia seu nome nem seu endereço.

Agora ele estava ali num dia de domingo diferente. Os anteriores, pelos quais passou, foram os piores dias naquele lugar, visto que ali, a rotina era sempre, por demais, massacrante, justamente pelo fato de nunca haver novidades. Ali passavam-se os dias da semana de forma igualitária, não havendo qualquer expectativa por algum dia em específico, como acontece com o final de semana de uma pessoa livre, que trabalha de segunda a sexta e descansa no sábado e no domingo, além dos feriados. Naquele lugar, todos acordavam no mesmo horário, ao soar da corneta do sentinela que, contaminado com a frieza do relógio, promovia, diária e pontualmente, o despertar de todos os presos, às 06 horas da manhã. Depois disso, todos tomavam banho, partiam para o refeitório, tomavam uma hora de banho de sol, voltavam para as celas, almoçavam ao meio dia, impreterivelmente, dormiam à tarde, o que provocava insônia à noite. Todos os dias haviam sido iguais até esse domingo. Aconteceria a primeira novidade que iria romper a rotina castigadora. E por isso ele havia acordado ainda mais cedo, antes da corneta despertadora do sentinela insensível. Estava muito ansioso. Iria rever seus amores, após um mês de prisão, mas esse período era contabilizado como um tempo muito maior em seu coração.

Sua memória, novamente, voltou a projetar aquele fatídico dia em que aceitou cegamente a proposta do tal homem sem nome, seu colega caminhoneiro. Ele lembrou que ficou esperando dentro do caminhão, enquanto os ajudantes seguiram por uma porteira, e, cerca de duas horas depois, voltaram num caminhão menor, o qual passou pela tal porteira, com todos os rapazes sobre a carga de centenas de sacas de amêndoas de cacau. Ele achou tudo ainda mais estranho, visto que ainda era madrugada e o amanhecer estava longe. Ele não sabia, sequer, para onde iria levar aquela mercadoria. O caminhão menor foi estacionado ao lado do veículo maior e os rapazes promoveram a transferência da carga. Ele ficou, realmente, desconfiado quando percebeu que aqueles rapazes estavam armados com revólveres. Ao manusearem as sacas, suas camisas se movimentavam, fazendo aparecer as armas em suas cinturas. Nesse momento ele reconheceu a realidade. Percebeu que os tais jovens não tinham as características próprias de ajudantes de caminhão, que são sempre fortes e musculosos. Mas ainda que tenha notado que se tratava de um crime, ele não deixou que percebessem. Agiu com naturalidade. Dirigiu o caminhão sozinho, guiado agora por um endereço escrito num pequeno pedaço de papel. Deixou o caminhão com a carga no local indicado. Era uma estrada secundária numa região desconhecida. Recebeu como pagamento, uma quantia bem maior do que esperava. Reconhecia que, pelo pagamento, ficou muito satisfeito. Experimentou uma sensação tão boa, que camuflou, em sua consciência, o sentimento de culpa e a angústia que lhe torturava moralmente.

Agora, no lugar onde foi parar por causa de suas decisões fundamentadas em verdades ignorantes, ele estava arrependido. Perderia, certamente, o seu caminhão, pois não conseguiria mais pagar as pesadas prestações do financiamento bancário. Não sabia como sua família estava fazendo para obter condições de pagar o aluguel da casa onde moravam. E a única coisa que lhe confortava era o fato de, ainda, ter a sua preciosa família. Ele sabia que havia errado, mas estava agora mais consciente do que nunca da necessidade de se reconhecer o sacrifício que custa para construir a fortaleza que se é uma família. Ele iria dizer tudo isso a sua esposa e filha, quando elas ali chegassem. Depois que ele saísse daquele lugar infernal, iria se juntar novamente a sua família, e viveriam felizes para sempre. Igual àquelas histórias dos filmes e novelas que ele assistia todas as noites com sua companheira, e se emocionavam juntos.

Faltava, agora, apenas uma hora para o horário da visita. Finalmente acabaria a sua espera, que parecia interminável, e isso nutria sua alma de uma esperança que se potencializava em sua mente, capaz de fazer com que ele se capacitasse para passar todo o período que fosse necessário ficar ali.
Ele se lembrava do dia em que foi preso. Lamentava e sentia vergonha da situação vexaminosa pela qual fez sua família passar. Ele morava num bairro popular de classe média, cercado de bons e íntimos vizinhos, com os quais trocavam favores e gentilezas. Era o dia seguinte ao fato criminoso em que foi envolvido. Ele estava em casa com sua família, e, após o almoço, brincava de esconde-esconde com sua pequena filha, enquanto sua esposa cuidava de algumas plantas. Para sua sorte, a menina continuou escondida cumprindo seu papel na brincadeira, e, assim, não viu o que se sucedeu com ele. Uma viatura parou à sua porta e os policiais o questionaram somente para confirmar seu nome, e rapidamente o conduziram preso. No veículo da polícia já estava o tal homem que lhe contratara para o serviço delituoso. Eles se entreolharam silentes e, simultaneamente, abaixaram as vistas.

Agora, após um mês de prisão, de acordo com as regras do estabelecimento prisional, era o seu primeiro dia de direito a receber visita. Era chegada a hora de se reencontrar com sua família, e ele estava nervoso. De frente para sua companheira e sua filha, ele estalou um sorriso que refletia fielmente toda a alegria do seu coração. Seus olhos brilhavam mais do que as estrelas mais vivas do céu. Sua felicidade estava incontida e ele sequer conseguiu dizer tudo o que tinha ensaiado. Recuperava-se do turbilhão de emoções, sua alma tomava fôlego e já estava quase voltando ao normal, quando a esposa fez o anúncio que lhe dilacerou o coração e implodiu sua alma. A esposa disse, com a voz embargada, que não teria mais como pagar o aluguel da casa em que moravam, que o banco já havia buscado e apreendido o caminhão, que a mensalidade da escola da filha não havia sido paga e a menina não mais poderia frequentar a escola. Apesar de corroído por dentro, ele já havia previsto que isso aconteceria. Mas o que a esposa disse em seguida, acabou de sepultar holísticamente o marido. “Não tenho como me manter, e vou aceitar o convite de minha irmã, vou para São Paulo, morar com ela, e vou trabalhar para poder criar a nossa filha. Conversei com um advogado e ele disse que a sua situação é muito grave, que você foi acusado de roubo e formação de quadrilha, e que vai ficar preso por dez anos”. Não tiveram mais muita coisa para falar. O silêncio reinou naqueles últimos minutos do período da visita. Ela foi embora. O casal se entregou a um último abraço, que se processou tão apertado que parecia sufocar o próprio amor. Ele abraçou sua filhinha, olhou-lhe os olhinhos inocentes e pretendeu, mas não conseguiu dizer com a boca que o amor entre ambos jamais morreria. Afinal isso tudo já havia sido dito numa espécie de telepatia, transmitida naquele olhar, pela janela da alma.

Anoiteceu, e, novamente, ele estava só. Ele se lembrou daquele último dia em que brincou de esconde-esconde com sua filha. Reexperimentou a noturna dor da saudade, no silêncio que vinha do seu grito, por causa da infinita dor que assolava o seu coração. O aço de que eram feitos os seus nervos, agora começava a se quebrar em mil pedaços. As luzes se apagavam gradativamente, mas ele sabia que a escuridão não esconderia a tristeza que agora compunha todo o seu ser. Assim como se aquietava sua esperança e tudo que pudesse ainda ser chamado de positivo, seu corpo ia adormecendo. O cerco da solidão ia cada vez mais se apertando. Ele queria dormir para sanar as dores que lhe torturavam, mas parecia que não iria conseguir naquela noite.

De repente, ouviu-se uma gargalhada de criança... Ele passou por uma porta grandiosamente iluminada e os risos da criança ficavam cada vez mais perto... Reconheceu que eram de sua amada filhinha... Ele não entendia como, mas estava novamente brincando de esconde-esconde... Ele não a via, mas ouvia claramente seus risos e sua voz que dizia “vem me encontrar, papai”... Ele estava de novo sentindo uma alegria que julgava ter perdido para sempre... “Será que estava sonhando?” Ele se questionava, mas não se esforçava para ter a resposta... De repente os guardas do presídio chegaram àquela porta radiosamente iluminada e lhe ordenaram que voltasse! Ele estava no meio do caminho, entre os guardas e sua filha... Caminhou de volta na direção da porta esplendorosa e, antes que os guardas pudessem reagir, ele fechou a porta por dentro. Os guardas não poderiam mais o alcançar. Ele ficaria ali com sua filha brincando de esconde-esconde...

Os guardas, pela manhã, estranharam a ausência dele no despertar ao toque da corneta do insensível sentinela. Ele também não foi visto no banho, nem no pátio ao sol, e o almoço não foi consumido. Logo o rabecão foi visto entrando no presídio para remover o corpo dele para o necrotério. Somente o corpo.

Luis Borsan

6 comentários

  1. "Tudo me é permitido, porém nem tudo me é lícito."
    Não se deve tomar o nome de Deus em vão, seja para piada, etc.

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  2. Devemos entregar nossa confiança em Deus, assim quando crianças dependemos e confiamos em nossos Pais.

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  3. Essa historia nos mostra que não devemos confiar em ninguém principalmente em caras bonitas e bem encaradas cheias de sorrisos largos.

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  4. História triste, mas com uma boa lição. Aguardando ansioso pela próxima.

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  5. Triste mais um pouco real.
    A necessidade de um trabalho ou uma renda para sustentar a familia fez com que ele aceitasse o trabalho. Que logo o fez perder tudo.Inclusive a vida.

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