CALEIDOSCÓPIO



A CAÇA

    Eu tinha que voltar antes das 18 horas, que era quando se iniciava o "toque de recolher" decretado pela prefeitura municipal, referente à Covid-19. Minha mãe sabia disso, mas me pediu para levar um remédio à casa da minha idosa tia. Até pensei em negar o pedido, mas tia Geneildes era uma pessoa muito generosa, e eu lhe devia muitos favores. Era sabido que a polícia estava fazendo rondas à procura de pessoas que estivessem desobedecendo o tal decreto de isolamento social, e, então, eu fui de moto, para assim agir mais rápido nessa ilegalidade. Pensei em quantas pessoas cometem delitos, e me convenci de que o que eu faria seria uma infração muito pequena, e logo estaria de volta sem prejudicar ninguém.
     Já estava fazendo o percurso de volta, quando avistei, de longe, uma viatura policial. Serrei os lábios e apertei os olhos num instintivo gesto de lamento. E nesse momento lembrei-me de que não estava portando documentos. Modifiquei o caminho para não ter que cruzar com o carro oficial, e fazia uma força como se quisesse me tormar invisível. Eu consegui. Não via mais o veículo da polícia. "Esses policiais são realmente bobos." Meu pensamento aliviado significava que eu era muito mais inteligente que a polícia.
     Meu Deus! Antes mesmo que eu tentasse entender como a polícia descobriu meu novo trajeto, por reflexo, dei meia volta quando me deparei de frente com a viatura. Eu não sabia bem o que estava fazendo. Ouvi o som torturador da sirene policial e acelerei, sem saber para onde estava indo. Entrei num pequeno beco escuro, desliguei a moto e apaguei as luzes. Já era noite, minha moto é preta, eu estava vestindo preto. Eu estava seguro. Agora, era só esperar um pouco até que os policiais fossem embora, para eu ter uma emocionante história para contar em casa. Naquele esconderijo escuro, onde eu me sentia um rato acuado, o tempo parecia parado.
     Duas luzes apareceram, de repente, na entrada do meu beco. Eu já não respirava. "Polícia!" Os gritos dos oficiais me pregaram um susto que me tirou a qualidade de racional. Eu corri e pensei que fosse morrer, quando ouvi tiros. Não sabia onde estava, até reconhecer as características de um manguezal. Afundei, praticamente, no extrato do mangue, dei graças a Deus, e permaneci ali, repensando todas as minhas atitudes naquele episódio. Pela manhã constatei que a polícia havia levado a minha moto, e era uma questão de tempo até me localizarem. Que arrependimento!


O CAÇADOR

     Eu não concordava com a nova obrigação de fazer rondas para procurar pessoas descuidadas com a própria saúde. A cidade estava deserta e a minha ronda parecia, cada vez, mais sem sentido. Meu colega pediu para adentrar naquele bairro para que ele passasse à porta da casa de sua namorada, onde, com certeza, tomaríamos um bom café. Isso me animou.
     Eu vi, de longe, uma moto passar, mas nem comentei com o meu colega, pois eu, agora, só pensava no café. Mas, de forma insistente, em outra rua, a tal moto voltou a aparecer à minha vista, enquanto eu torcia para que meu colega não a visse e cancelasse o nosso cafezinho. Então a moto sumiu e eu concluí que o condutor certamente havia visto a viatura e, sabiamente, foi embora daquela área.
     Já estávamos perto do nosso destino saboroso, quando a moto idiota, numa esquina, se deparou de frente conosco. Eu respirei fundo, meu colega a viu, a moto deu meia volta e empreendeu fuga. Nenhuma outra opção para a polícia, a não ser a perseguição. Aquele indivíduo que já havia visto a viatura, continuava circulando naquele bairro, demonstrava personalidade perigosa. Precisava ser detido para se saber o motivo da sua fuga. Meu colega comentava: "a moto deve ser roubada; ele deve estar portando drogas; ele pode estar armado". Após um tempo, não ouvimos mais o barulho da moto. Acabou. Agora, finalmente, o café. E como já estávamos bem próximos da casa da desejada bebida revigorante, descemos da viatura, ligamos nossas lanternas para iluminar o beco, que dava acesso à casa onde tomaríamos o comentado café, e que ficava aos fundos da residência do locador.
     Eu não acreditei. Ali no beco escuro, agachado atrás da moto, o desconhecido, de pulo, nos surpreendeu e saiu correndo em direção a um manguezal. Tivemos mais certeza de que se tratava de algum perigoso marginal que conhecia muitas estratégias de enganar a polícia. Nossa reação, instintiva, foi sacar nossas armas, proferirmos voz de comando: "Pare, senão eu atiro" e disparar para o chão de terra-batida, uma vez que não é recomendado fazê-lo para cima, porque, segundo Newton, tudo o que sobe desce, e desce acrescido de aceleração, sendo, em sua velocidade final, capaz de matar alguém. O suspeito desconhecido não parou. Tivemos que voltar para a central com a moto apreendida, para a partir dos seus dados, pesquisar a identidade do suspeito. Daí ficou tarde e, terrivelmente, perdemos o precioso café.

UM ESTRANHO NO NINHO

     Eu voltava a pé de uma farra na casa de um amigo, próximo da minha residência, onde eu havia bebido muitas cervejas. Era chegado o final daquele alegre domingo e, apesar de quase embriagado, eu sabia que não acordaria mais bonito, porém tinha certeza de que descansaria para amanhecer revigorado. Eu caminhava rápido, porque o efeito diurético da cerveja já inflava doloridamente a minha bexiga, ao ponto de me fazer mudar de estratégia, logo depois, e passar a andar devagar, para não correr o risco de chegar em casa com as calças molhadas.
     Mesmo sabendo que não se deve urinar na rua, acabei sucumbindo à força da natureza, à necessidade fisiológica, e, emergencialmente, adentrei num beco escuro, após olhar para todos os lados, para "verter água", "tirar água do joelho". Já estava no final do procedimento mictório, quando fui tomado por uma forte sensação. Pensei por um instante, que fosse o costumeiro siricutico, o tremelique que ocorre por descarga de hormônios, quando da alternância das ações de contração da bexiga e do canal urinário. Mas logo me dei conta de três indivíduos correndo na minha direção, atirando.
     Nessa soma de sensações, com lanternas ofuscando minha visão, eu não tive tempo de tentar entender nada. Acredito que voei na corrida em direção ao manguezal, mas logo tropecei nas raízes aéreas dos peculiares arbustos, e permaneci deitado. Não sabia se os três autores dos tiros tinham se dado por satisfeitos, se estavam ali, no escuro, perto de mim, aguardando que eu fizesse um barulho, para me localizar e me matar. Assim, após recobrar algum raciocínio lógico, e como estava perto de casa, arrastei-me pela "lama" do mangue, sem sequer sentir os vários arranhões provocados por restos calcificados, até ter acesso aos fundos da minha casa. Senti-me seguro, aliviado, mas a me questionar: "Como alguém pode atirar numa pessoa só por causa de uma mijada?!
Luis Borsan.

 

4 comentários

  1. Muito boa, três visões gerado por uma ação, a princípio tudo se resolveria com uma advertência, maus as errôneas decisões de um acabaria em dificuldades para quatro.

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  2. Poderia ler o desenrolar da historia por horas. Parabéns amigo Luis

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  3. Parabéns meu nobre! Cada dia mais completo seus textos literários!

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