O PERIGOSO PODER DA MENTE

     

     Era uma questão de tempo. De muito pouco tempo. Ele sabia que iria morrer. O ar frio que entrava em suas narinas parecia que já as havia anestesiado, mas os seus pulmões aparentavam estar sendo atacados por milhares de facas pontiagudas, que os dilaceravam por dentro. Primeiro ele pensou em ficar ali parado, sentado ou deitado, para acelerar o processo da sua morte e diminuir seu insuportável sofrimento. Seu corpo já demonstrava o início do inevitável processo de congelamento. Mas ainda assim, ele decidiu lutar pela vida, principalmente ao perceber o tremor do seu corpo, que é um movimento instintivo de sobrevivência, pelo qual a vida tenta se manter, aquecendo um corpo sob frio intenso.

     Talvez ele morresse antes, quando sua mente explodisse tentando encontrar uma razão para aquele terrível acontecimento. O pânico tomava conta do seu ser. Pensou em respirar fundo como uma forma terapêutica de se acalmar, mas isso doía muito. Assim, como muito esforço, ele recapitulou que a sua equipe havia terminado o serviço de manutenção na gigantesca câmara fria daquele frigorífico, e ele, especialista em segurança do trabalho, perfeccionista ao extremo, havia feito todos os precedimentos de segurança, que visavam a impossibilizar que alguém pudesse ficar preso naquele inferno às avessas, cuja temperatura chegava a incríveis -100ºC. O último procedimento incluío uma chamada nominal, de todos os operários envolvidos no trabalho, visto que ele sabia que, por mais incrível que pareça, são bem comuns as mortes de pessoas presas nessas super-geladeiras.

     Ele se lembrou que, ao chegar para o serviço, o responsável pelo frigorífico lamentava-se que empresa já amargava um prejuízo incalculável, visto que a câmara fria havia ficado vazia e parada por quase um mês. Mesmo em meio ao frio torturador, ele ainda regozou o orgulho de ouvir os agreadecimentos pelo serviço bem feito e eficaz. Ele havia vindo da capital com sua equipe de técnicos, e havia resolvido o problema daquela empresa que, agora, esperava uma nova carga demercadorias que chegaria ao amanhecer. Fechou os olhos e esboçou um sorriso de canto de boca, diante da irônica lembrança de sua ordem, de que a câmara fria deveria passar a noite ligada na potência máxima.

     Ele se martirizava ainda mais ao relembrar que já havia dispensado a todos da sua equipe, e como um bom chefe, fez questão de rever o seu checklist, e percebeu que não havia dado a devida importância à limpeza; que abriu a porta da câmara fria e percebeu uma mancha no chão, maculável mais à imagem de sua equipe. Adentrou e caminhou em direção à sujeira, mas logo percebeu que era uma miragem, um reflexo sombreado. Parou  e olhou àquela ilusão pensativo, fitando o infinito, sem saber que no fundo, queria ficar mais um pouco ali, orgulhoso do seu feito, de ter, finalmente conseguido consertar aquela moderna engenharia, visto que já era o terceiro a tentar. Cobraria um valor maior.

     Ele não sabia como a porta havia se fechado. Seus pensamentos já enfrentavam dificuldade de processamento. Ele desistiu de forçar a mente buscando esse entendimento. Ele sabia que pela manhã abririam a câmara, com a chegada da esperada mercadoria, mas ao mesmo tempo sabia, tinha certeza de que o seu trabalho de manutenção havia sido perfeito, e com isso nada ficaria ali dentro por muito tempo sem se congelar. Resolveu que faria de sua última experiência, algo legítimo. Valeu-se de um gancho de metal e com sua extremidade pontiaguda, passou a escrever nas paredes niqueladas daquela magnífica estrutura. Escreveria sobre suas sensações térmicas terminais. Narraria a sua lenta morte.


     Às seis horas da manhã, pontualmente, a porta da câmara fria foi aberta. E todos ficaram chocados com aquela situação. O homem estava ali morto, segurando ainda o gancho com o qual rabiscara as paredes. Atônitos, passaram a ler os escritos para buscar algum ponto de entendimento.


     "Já não sinto mais frio. Não sinto mais as extremidades do meu corpo. Tudo dói. A vontade é de parar de respirar para cessar minha ígnea tortura interna, pois o frio intenso queima meus pulmões. Minhas lágrimas congelariam se eu chorasse como faz um bebê ao nascer, diante de sua primeira respiração, quando seus pulmões promovem dores dilacerantes nas primeiras inflações. Tenho que manter os olhos fechados, mas acho que já é tarde demais. já não consigo enxergar. As pupilas se congelaram, e as próximas serão as pálpebras. Pareço estar flutuando, pois, como era de se esperar, não sinto meus membros inferiores. Tudo em mim treme, por fora e por dentro. E isso é meu único alento. É sinal de vida. Por enquanto. Meus pensamentos já não têm mais lógica, já não consigo pensar direito. Não esperava morrer assim. O pânico toma conta de mim, mas nem isso faz o frio diminuir. Melhor seria morrer queimado. Será que pela manhã poderão me ressucitar, descongelando meu corpo? É muito ruim essa sensação de se perder a vida assim tão lentamente. Vou me sentar. Vou me deitar. Não vou mais conseguir escrever. Tentei rir dessa situação, mas meu rosto está congelado. Adeus..."



     O que mais intrigava as pessoas não era como aquele homem foi parar ali, mas como ele pôde morrer de frio. Pois quinze minutos depois da saída dos operários da manutenção, recebeu-se a informação de que a esperada mercadoria não chegaria mais naquela manhã, sendo que a câmara fria foi desligada e fechada, e a temperatura era de 19ºC.

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